domingo, 26 de julho de 2020

POR MARCELO GURGEL - A COVID-19 E A INDÚSTRIA DA SAÚDE NO BRASIL



 * Publicado In: Jornal do médico digital, 1(3): 60-4, julho de 2020. (Revista Médica Independente do Ceará).

 Abaixo, link para o Jornal do Médico

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A COVID-19 E A INDÚSTRIA DA SAÚDE NO BRASIL
Mostraram-se infundadas as previsões esboçadas no começo do ano de 2020 por autoridades e infectologistas, divulgadas nas mídias, de que não se reproduziriam em nosso País as preocupantes taxas de incidência e de letalidade por Covid-19, verificadas em alguns países europeus (Bélgica, Itália, França, Espanha e outros). Para eles, atuavam a nosso favor o clima da Terra Brasilis, inóspito ao aconchego do novo coronavírus, e a existência do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado, de forma ufana, o maior e o mais abrangente sistema de saúde entre as nações com mais de cem milhões de habitantes.
Pesarosamente, esse otimismo inicial não se concretizou. A Covid-19, que nos idos de julho em curso já acumula uma cifra que se aproxima de dois milhões de casos e de mais de 70 mil óbitos no Brasil, afetou duramente a economia nacional, quando esta se encontrava em processo de recuperação, e exibiu a vulnerabilidade da prestação de cuidados de saúde, tanto públicos como privados, ao tempo em que se assistiu a um ingente esforço de superação das dificuldades para o enfrentamento da pandemia.
A presente pandemia foi uma situação atípica, que nenhum país do mundo estava preparado para enfrentá-la, mesmo os mais desenvolvidos. Porém, ela ganhou contornos mais graves no Brasil, dentre outros motivos, em função da deficiência da indústria da saúde brasileira, ainda muito à mercê do mercado internacional.
A dependência de insumos produzidos no exterior, a insuficiência de um parque industrial voltado para a saúde, a inexistência de uma rede de atendimentos para suprir a contento a demanda usual e as desigualdades, geográfica e social, na distribuição de recursos de saúde figuram no rol dessas dificuldades.
Diante da inusitada e súbita pressão de demanda, com a crescente avalanche de pacientes procurando atendimentos na rede de saúde, de certo modo estagnada, porquanto os tíbios investimentos em saúde dos últimos decênios sequer acompanharam o pouco crescimento demográfico experimentado, ao tempo em que o SUS precisou, gradualmente, acomodar parte da nossa população então marginalizada da assistência médica. Essa penúria foi agravada pela mudança do perfil epidemiológico dos brasileiros, retratado no avanço de doenças de maior complexidade e de custos mais exacerbados.
O montante de leitos ativos disponíveis, que já não era suficiente para cobrir as necessidades de internamentos antes da pandemia, requeria a sua pronta ampliação, sendo premente a expansão dos leitos de Unidades de Terapia Intensivo (UTI), cujo histórico de carência era bem sabido, uma vez que se estimava que cerca de 5% dos pacientes com a Covid-19 que chegassem aos hospitais necessitariam ocupar um leito de UTI.
Os gestores de saúde, ancorados na recomendação de se buscar o achatamento da curva epidêmica, protraindo a chegada volumosa e simultânea de casos, precisavam engendrar mecanismos para expandir a oferta de serviços e de leitos especificamente destinados aos cuidados de pacientes acometidos de Covid-19.
Essa expansão de oferta fez-se pela incorporação de leitos, novos ou habilitados, e pela realocação do estoque de leitos existentes, reservando-os, com exclusividade, à Covid-19. O Ceará vem reagindo de maneira rápida e eficiente, na medida do possível, mas também soma alguns equívocos, como a criação do hospital de campanha em estádio de futebol. O Município de Fortaleza gastou uma dinheirama em algo que demorou a ficar pronto, não é definitivo e vai demandar mais recursos para recuperar o que era antes. Melhor seria ter requisitado mais hospitais que estavam ociosos, como o governo estadual fez com o Hospital Leonardo da Vinci que, inclusive, vai ajudar a reforçar o atendimento no pós-pandemia.
No caso dos leitos de UTI, a complicação era amplificada, não se limitando a espaço físico e instalações, uma vez que determinava a aquisição de equipamentos médicos mais sofisticados e caros e se cobrava a contratação de pessoal qualificado para operar esses instrumentos.
Ainda que a Covid-19 seja uma enfermidade de repercussão sistêmica em pacientes mais graves, a insuficiência respiratória era aspecto clínico dominante e indicativo de gravidade, sendo um forte fator preditivo para o desenlace fatal. Para isso, era mandatório dispor de respiradores para assegurarem a ventilação mecânica dos pacientes, concedendo-os mais chances de sobrevivência se recebessem esse tipo de assistência médica.
Como não havia suficiência de estoques de respiradores para pronta entrega no mercado nacional e a fabricação desse produto demanda tempo, as autoridades dos poderes executivos e os gestores de saúde do Brasil apelaram para a importação de respiradores no mercado internacional, bastante oligopolizado e concentrado, em uma acirrada e desigual disputa entre países assustados com o avançar da Covid-19 em seus cidadãos, quando se parecia evocar o suposto adágio bíblico “Mateus, primeiro os teus”, com retenção de equipamentos comprados pelos concorrentes ao pousarem em seus territórios, bem como abusar de outras práticas comerciais nada recomendáveis, a exemplo de ágio para garantir a preferência de compra.
A situação brasileira era ainda mais constrangedora por razões internas, dado que a intermediação comercial feita, em parte, por certos “atravessadores” inescrupulosos e, talvez, até em conluio com alguns gestores públicos, redundou em preços com enormes variações e em aquisições de respiradores com valores exorbitantes, com claros indícios de superfaturamento. Tal anomalia resultou do “aproveitamento” da decretação da calamidade pública, quando temporariamente foram suspensos mecanismos criteriosos de controle das compras públicas, flexibilizando e simplificando os processos licitatórios, o que inclusive permitiu o acolhimento de propostas que tiveram pagamentos antecipados e sem a contrapartida do recebimento da mercadoria adquirida.
Esses entraves relativos à incorporação de respiradores foram parcialmente contornados pelos ingentes esforços para incrementar a produção desses aparelhos, quando os fabricantes aumentaram a capacidade produtiva e outras empresas fizeram adequações em suas linhas de produção e passaram também a fabricar respiradores.
A associação entre a academia e os serviços de saúde tem suscitado respostas animadoras, tanto em simplicidade como em custos de produção e, de forma criativa, tem resultado em protótipos de respiradores, que podem entrar em linha de produção em escala industrial, a exemplo do “Elmo”, um respirador fruto da parceria envolvendo a Universidade de Fortaleza, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e a Escola de Saúde Pública do Ceará. Houve também um avanço principalmente na articulação para soluções caseiras de produtos, sobretudo, os mais simples, como EPIs (máscaras, aventais etc.).
No atual cenário cearense da Covid-19, em que prevalece o declínio da ocorrência epidêmica em Fortaleza concomitante à sua expansão interiorana, as compras de novos respiradores já são prescindíveis, comportando mais, no presente, pôr em marcha processos de referência e de contra-referência de pacientes e/ou a efetivação de remanejamento desses aparelhos da capital para locais compatíveis e onde se façam mais necessários.
Nesse tocante, é oportuno salientar que a singular Unimed Fortaleza, tendo ultrapassado os momentos mais críticos da pandemia, cedeu, à guisa de empréstimo, respiradores para a sua congênere de Teresina, que ora vem se deparando com o avanço do novo coronavírus entre os seus beneficiados do Piauí.
Embora de menor visibilidade pública, aconteceram transtornos na disponibilidade de testes diagnósticos e de medicamentos complementares (antibióticos, anti-inflamatórios, miorrelaxantes, anestésicos etc.) usados no tratamento da Covid-19, posto que a fabricação endógena dos mesmos depende do fornecimento de insumos e sais que são importados, sendo a eles impingidos dissabores decorrentes da competição internacional em que a escassez frente à demanda hiperbólica por esses bens contamina seriamente a livre concorrência do mercado.
Para uma reestruturação mais sólida da indústria da saúde há um longo caminho pela frente, porém algumas mudanças já podem ser verificadas na cadeia produtiva da saúde no Ceará. Com efeito, uma maior articulação entre Governo, pesquisadores e empresas também tem viabilizado o desenvolvimento de novos produtos. Assim é que a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) lançou, recentemente, um edital com uma linha emergencial específica para Covid-19, ofertando investimento da ordem de R$ 2,4 milhões, para projetos que contemplem soluções para área da saúde.
Está-se, na verdade, distante de uma solução definitiva, porém já não se permanece no mesmo patamar anterior. Há muito ainda a progredir para diminuir essa dependência, notadamente de insumos; contudo a pandemia evidenciou, com certeza, a importância de se ter um foco mais apurado para indústria da saúde no Brasil.
Prof. Dr. Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico-sanitarista e economista da Saúde
* Publicado In: Jornal do médico digital, 1(3): 60-4, julho de 2020. (Revista Médica Independente do Ceará).
Postado no Blog do Marcelo Gurgel em 26/7/2020.
http://blogdomarcelogurgel.blogspot.com/2020/07/a-covid-19-e-industria-da-saude-no.html 

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