* Publicado In: Jornal do médico digital, 1(3): 60-4, julho de 2020. (Revista Médica Independente do Ceará).
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A COVID-19 E A INDÚSTRIA DA
SAÚDE NO BRASIL
Mostraram-se
infundadas as previsões esboçadas no começo do ano de 2020 por autoridades e
infectologistas, divulgadas nas mídias, de que não se reproduziriam em nosso
País as preocupantes taxas de incidência e de letalidade por Covid-19,
verificadas em alguns países europeus (Bélgica, Itália, França, Espanha e
outros). Para eles, atuavam a nosso favor o clima da Terra Brasilis,
inóspito ao aconchego do novo coronavírus, e a existência do Sistema Único de
Saúde (SUS), considerado, de forma ufana, o maior e o mais abrangente sistema
de saúde entre as nações com mais de cem milhões de habitantes.
Pesarosamente,
esse otimismo inicial não se concretizou. A Covid-19, que nos idos de julho em
curso já acumula uma cifra que se aproxima de dois milhões de casos e de mais
de 70 mil óbitos no Brasil, afetou duramente a economia nacional, quando esta
se encontrava em processo de recuperação, e exibiu a vulnerabilidade da prestação
de cuidados de saúde, tanto públicos como privados, ao tempo em que se assistiu
a um ingente esforço de superação das dificuldades para o enfrentamento da
pandemia.
A
presente pandemia foi uma situação atípica, que nenhum país do mundo estava
preparado para enfrentá-la, mesmo os mais desenvolvidos. Porém, ela ganhou
contornos mais graves no Brasil, dentre outros motivos, em função da
deficiência da indústria da saúde brasileira, ainda muito à mercê do mercado
internacional.
A
dependência de insumos produzidos no exterior, a insuficiência de um parque
industrial voltado para a saúde, a inexistência de uma rede de atendimentos
para suprir a contento a demanda usual e as desigualdades, geográfica e social,
na distribuição de recursos de saúde figuram no rol dessas dificuldades.
Diante
da inusitada e súbita pressão de demanda, com a crescente avalanche de
pacientes procurando atendimentos na rede de saúde, de certo modo estagnada,
porquanto os tíbios investimentos em saúde dos últimos decênios sequer acompanharam
o pouco crescimento demográfico experimentado, ao tempo em que o SUS precisou,
gradualmente, acomodar parte da nossa população então marginalizada da
assistência médica. Essa penúria foi agravada pela mudança do perfil
epidemiológico dos brasileiros, retratado no avanço de doenças de maior
complexidade e de custos mais exacerbados.
O
montante de leitos ativos disponíveis, que já não era suficiente para cobrir as
necessidades de internamentos antes da pandemia, requeria a sua pronta
ampliação, sendo premente a expansão dos leitos de Unidades de Terapia
Intensivo (UTI), cujo histórico de carência era bem sabido, uma vez que se
estimava que cerca de 5% dos pacientes com a Covid-19 que chegassem aos
hospitais necessitariam ocupar um leito de UTI.
Os
gestores de saúde, ancorados na recomendação de se buscar o achatamento da
curva epidêmica, protraindo a chegada volumosa e simultânea de casos,
precisavam engendrar mecanismos para expandir a oferta de serviços e de leitos
especificamente destinados aos cuidados de pacientes acometidos de Covid-19.
Essa
expansão de oferta fez-se pela incorporação de leitos, novos ou habilitados, e
pela realocação do estoque de leitos existentes, reservando-os, com
exclusividade, à Covid-19. O Ceará vem reagindo de maneira rápida e eficiente,
na medida do possível, mas também soma alguns equívocos, como a criação do
hospital de campanha em estádio de futebol. O Município de Fortaleza gastou uma
dinheirama em algo que demorou a ficar pronto, não é definitivo e vai demandar
mais recursos para recuperar o que era antes. Melhor seria ter requisitado mais
hospitais que estavam ociosos, como o governo estadual fez com o Hospital
Leonardo da Vinci que, inclusive, vai ajudar a reforçar o atendimento no
pós-pandemia.
No
caso dos leitos de UTI, a complicação era amplificada, não se limitando a
espaço físico e instalações, uma vez que determinava a aquisição de
equipamentos médicos mais sofisticados e caros e se cobrava a contratação de
pessoal qualificado para operar esses instrumentos.
Ainda
que a Covid-19 seja uma enfermidade de repercussão sistêmica em pacientes mais
graves, a insuficiência respiratória era aspecto clínico dominante e indicativo
de gravidade, sendo um forte fator preditivo para o desenlace fatal. Para isso,
era mandatório dispor de respiradores para assegurarem a ventilação mecânica
dos pacientes, concedendo-os mais chances de sobrevivência se recebessem esse
tipo de assistência médica.
Como
não havia suficiência de estoques de respiradores para pronta entrega no
mercado nacional e a fabricação desse produto demanda tempo, as autoridades dos
poderes executivos e os gestores de saúde do Brasil apelaram para a importação
de respiradores no mercado internacional, bastante oligopolizado e concentrado,
em uma acirrada e desigual disputa entre países assustados com o avançar da
Covid-19 em seus cidadãos, quando se parecia evocar o suposto adágio bíblico
“Mateus, primeiro os teus”, com retenção de equipamentos comprados pelos
concorrentes ao pousarem em seus territórios, bem como abusar de outras
práticas comerciais nada recomendáveis, a exemplo de ágio para garantir a
preferência de compra.
A
situação brasileira era ainda mais constrangedora por razões internas, dado que
a intermediação comercial feita, em parte, por certos “atravessadores”
inescrupulosos e, talvez, até em conluio com alguns gestores públicos, redundou
em preços com enormes variações e em aquisições de respiradores com valores
exorbitantes, com claros indícios de superfaturamento. Tal anomalia resultou do
“aproveitamento” da decretação da calamidade pública, quando temporariamente
foram suspensos mecanismos criteriosos de controle das compras públicas,
flexibilizando e simplificando os processos licitatórios, o que inclusive
permitiu o acolhimento de propostas que tiveram pagamentos antecipados e sem a
contrapartida do recebimento da mercadoria adquirida.
Esses
entraves relativos à incorporação de respiradores foram parcialmente
contornados pelos ingentes esforços para incrementar a produção desses
aparelhos, quando os fabricantes aumentaram a capacidade produtiva e outras
empresas fizeram adequações em suas linhas de produção e passaram também a
fabricar respiradores.
A
associação entre a academia e os serviços de saúde tem suscitado respostas
animadoras, tanto em simplicidade como em custos de produção e, de forma
criativa, tem resultado em protótipos de respiradores, que podem entrar em
linha de produção em escala industrial, a exemplo do “Elmo”, um respirador
fruto da parceria envolvendo a Universidade de Fortaleza, o Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e a Escola de Saúde Pública do
Ceará. Houve também um avanço principalmente na articulação para soluções
caseiras de produtos, sobretudo, os mais simples, como EPIs (máscaras, aventais
etc.).
No
atual cenário cearense da Covid-19, em que prevalece o declínio da ocorrência
epidêmica em Fortaleza concomitante à sua expansão interiorana, as compras de
novos respiradores já são prescindíveis, comportando mais, no presente, pôr em
marcha processos de referência e de contra-referência de pacientes e/ou a
efetivação de remanejamento desses aparelhos da capital para locais compatíveis
e onde se façam mais necessários.
Nesse
tocante, é oportuno salientar que a singular Unimed Fortaleza, tendo ultrapassado
os momentos mais críticos da pandemia, cedeu, à guisa de empréstimo,
respiradores para a sua congênere de Teresina, que ora vem se deparando com o
avanço do novo coronavírus entre os seus beneficiados do Piauí.
Embora
de menor visibilidade pública, aconteceram transtornos na disponibilidade de
testes diagnósticos e de medicamentos complementares (antibióticos,
anti-inflamatórios, miorrelaxantes, anestésicos etc.) usados no tratamento da
Covid-19, posto que a fabricação endógena dos mesmos depende do fornecimento de
insumos e sais que são importados, sendo a eles impingidos dissabores
decorrentes da competição internacional em que a escassez frente à demanda
hiperbólica por esses bens contamina seriamente a livre concorrência do
mercado.
Para
uma reestruturação mais sólida da indústria da saúde há um longo caminho pela
frente, porém algumas mudanças já podem ser verificadas na cadeia produtiva da
saúde no Ceará. Com efeito, uma maior articulação entre Governo, pesquisadores
e empresas também tem viabilizado o desenvolvimento de novos produtos. Assim é
que a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(Funcap) lançou, recentemente, um edital com uma linha emergencial específica
para Covid-19, ofertando investimento da ordem de R$ 2,4 milhões, para projetos
que contemplem soluções para área da saúde.
Está-se,
na verdade, distante de uma solução definitiva, porém já não se permanece no
mesmo patamar anterior. Há muito ainda a progredir para diminuir essa
dependência, notadamente de insumos; contudo a pandemia evidenciou, com
certeza, a importância de se ter um foco mais apurado para indústria da saúde
no Brasil.
Prof. Dr. Marcelo
Gurgel Carlos da Silva
Médico-sanitarista e economista da
Saúde
* Publicado In: Jornal do médico
digital, 1(3): 60-4, julho de 2020. (Revista Médica Independente do Ceará).
Postado no Blog do Marcelo Gurgel em
26/7/2020.
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